dezembro 29, 2010

O cheiro da memória

Hoje já não faço árvores de Natal. Guardo-as na memória. Como guardei o cheiro da caixinha de pó-de-arroz que a minha mãe guardava na gaveta de cima da cómoda. Pertença da minha avó, aquele cheiro continha memórias de família de um tempo que não conheci. Era uma herança. E quando a abria todas as coisas boas da minha infância saltavam cá para fora e preenchiam o espaço agora vazio.

As lembranças têm cheiros e têm imagens. Como aquela à luz da noite que acabara de cair, ainda inverno, e um projecto de paixão que não passou de um toque de beijo partilhado na ombreira da porta, o seu primeiro beijo de amor, que se prolongou no tempo por mais de trinta anos. Tinha o sabor da ternura e do mel e do fruto proibido, porque o destino que fazemos assim o quis.

Às vezes o tempo enche-nos com memórias destas que nos confirmam que o próprio tempo não tem tempo e pode acontecer hoje. E somos felizes, à luz da vida, em qualquer lugar do entardecer.

dezembro 23, 2010

... e Paz na Terra aos Homens de boa vontade.


[fotografia em ambiente virtual - MTL]

dezembro 11, 2010

Nas arcadas, a urbe
que ainda dorme.
de nascente chega o oiro
da luz. desperta o relógio
da torre que adianta
os passos dos
transeuntes, pequenos seres
de corda.
Posso beber um café e uma
incerteza: não sei se vá
não sei se fique.
Pura dormência do outono
e do perfume a castanhas
que há-de vir.


Teresa Lobato, inédito

dezembro 04, 2010

No frio deste Outono...

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla...
em todas as línguas do mundo

uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luzque vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.

Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha. Não na distância. Aqui no meio de nós.

Brilha.


Jorge de Sena, Fidelidade (1958) Moraes, Lisboa